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A luz que cega!*


Há uma obra de José Saramago publicada em 1995 com tradução em várias línguas, chamada “Ensaio Sobre a Cegueira”. Esta obra tornou-se filme em 2008 pelas mãos do diretor Fernando Meirelles e também pode ser vista nos teatros. A história conta de um japonês que, por não conseguir enxergar, pede ajuda até que alguém o leva até em casa e acaba por roubar o seu carro. No dia seguinte o japonês e sua esposa vão ao oftalmologista para saber o que está acontecendo e aos poucos uma epidemia se alastra e, com exceção da mulher do oftalmologista, todos ficam cegos. Devido ao alastramento da epidemia o governo decreta quarentena e separa as pessoas cegas das outras, mas mesmo assim a epidemia continua se alastrando.

Presos em uma construção, confinados a uma convivência sem a visão, os internos formam dois grupos e pouco a pouco a convivência se torna insustentável. Até que chega ao ponto em que um dos grupos, por questão de sobrevivência acaba por incendiar o lugar e fugir, mesmo às cegas. Já em casa, depois de uma longa e exaustiva caminhada, cada um faz um pedido, o que gostaria naquele momento. O interessante é que, mesmo sem enxergar, nenhum deles pedem o retorno da visão, cada um pede coisas simples, em sua maior parte o que dá o conforto à alma. Enquanto não enxergavam, os personagens diziam ver uma luz branca. Por vezes não é o escuro que cega as pessoas, mas a claridade.

No dia-a-dia em contato com pessoas de diferentes áreas de formação, status econômico, religião ou religiosidade, filosofia de vida e tantas outras diferenças podemos escutar: “Há uma luz no fim do túnel”. Estas pessoas estão vivendo o aqui e o agora, mas o seu pensamento está tão focado num futuro que “vai chegar” que o que veem é uma luz. Esta luz que veem é diferente para cada uma, para alguns a luz no fim do túnel é o dinheiro para pagar as contas no mês que vem. Para outras, a luz no fim do túnel é o emprego que desejam para si. Existem ainda pessoas para as quais a luz no fim do túnel é o relacionamento que um dia pode dar certo. Apenas para fechar as possíveis luzes, pense em qual será a luz no fim do seu túnel.

Olhando fixamente para esta luz estas pessoas passam dias, semanas, meses, anos caminhando naquela direção. Todo o tempo que caminham um pensamento é recorrente: “Quanto eu chegar lá...” Esta luz os dá força, alimenta sua alma e faz com que caminhem em passos largos, firmes e decididos, voltados para a claridade que é onde colocaram seus objetivos. Estão tão resolutos em sua caminhada e olham tão fixamente para a luz que tudo o que está na sombra passa despercebido, ou seja, ao olhar fixamente para a luz não conseguem enxergar o que está à sombra dela.

Esta luz, a claridade intensa que foi colocada como objetivo de vida pode cegar a pessoa para as vivências do presente. Quando chegar ao objetivo, conquistar a tão buscada luz no fim do túnel, pode olhar para trás iluminado pela claridade e perceber que muitas coisas boas ficaram pelo caminho. Ao focar a claridade do tão sonhado emprego a família pode ter ficado na sombra e quando se chega ao objetivo e olha-se para trás, ela já pode não existir mais. Ao ganhar o dinheiro que queria para pagar as contas e ter um tanto para guardar no banco, o amor da vida pode ter ficado na sombra pelo caminho. Ao se fixar atentamente ao relacionamento que pode dar certo pode acontecer que a sombra cubra o outro que está nesse relacionamento.

Não há nada de errado em ter objetivos e buscá-los diariamente, colocar pontos de luz na vida que possam alimentar a alma durante os períodos difíceis. Mas estes pontos devem irradiar claridade para todo o restante da vida e não cegar. Seria interessante pensar se não são os seus filhos que estão à sombra da luz que você observa no fim do túnel.

*Rosemiro A. Sefstrom
Filósofo Clínico
Criciúma/SC

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