Dormir é uma
necessidade fisiológica. A cada 16 horas o corpo exige uma pausa para descanso.
Neste período ocorrem liberação de hormônios, sonhos e recuperação do cansaço e
fadiga. O sono é um poderoso revigorante físico e emocional, diminuindo o
estresse, melhorando a memória, o raciocínio, rejuvenescendo a pele,
controlando o apetite.
Acordar é diferente.
Acordar é uma benção, um presente. Normalmente, depois de seis a oito horas
adormecidas, as pessoas acordam. No entanto, as mais diversas religiões afirmam
que durante o sono um pedaço da alma, ou sua totalidade, se desprende do corpo
e, conforme a vontade divina, retorna ou não para que o individuo possa
acordar. Por isso, fiéis rezam antes de dormir, pedindo que sejam protegidos
pelo altíssimo durante o sono e abençoados com o acordar.
Como as certezas podem
mudar de lugar, para os insones a regra é outra, dormir é considerado uma
benção e ficar acordado, uma maldição.
Dormir sob efeito de
uma anestesia já é outra coisa, completamente diferente do sono fisiológico e
do acordar abençoado. Tanto na anestesia
como no sono normal, as pessoas permanecem de olhos fechados, mas as
semelhanças param por ai. Um processo é farmacológico, o outro fisiológico. Durante muito tempo, o acordar anestésico foi
uma incerteza bem maior que o acordar bendito. Alguns tiveram a sorte de passar
pela vida sem jamais chegar perto de uma anestesia, outros a experimentaram de
forma esporádica. Alguns acordaram, outros não.
A primeira anestesia
que se tem noticia, está descrita no Gênesis capitulo 2, versículo 21: “Então o
Senhor Deus fez vir sobre o homem um profundo sono. E ele adormeceu. Tirou-lhe
uma das costelas e fechou com carne. Versículo 22: “Depois, da costela tirada
do homem, o Sr. Deus formou a mulher e apresentou-a ao homem”.
Depois disso, a
anestesia virou um processo químico e não foi mais aplicada por seres divinos,
anjos ou pelo próprio deus. Passou a ser praticada por homens, e seu
aprendizado teve que ser feito na base da tentativa do acerto e do erro. Barbeiros,
curandeiros, curiosos, alquimistas, sacerdotes, enfermeiras, estudantes e até
mesmo médicos do passado, desconhecendo os efeitos poderosos dos anestésicos,
exerceram de forma rudimentar a função de anestesistas e catalogaram em seus
currículos complicações sérias e até mesmo fatais.
A garantia bíblica de
acordar depois de uma anestesia deixou de ser assegurada. O temor do sono
eterno provocado por complicação anestésica se instaurou e quando alguém
precisava realizar uma cirurgia, familiares choravam, despediam-se do infeliz,
e rezavam para que tivesse a sorte de sobreviver a anestesia sem sequelas.
Uma pesquisa recente,
realizada pela Sociedade Americana de Anestesiologia, revelou que 75% dos
entrevistados disseram temer a anestesia. De cada quatro pacientes, um tem
tanto receio que acaba adiando ou mesmo desistindo do procedimento cirúrgico.
Nem todos podem fugir.
Mesmo não sendo desejada, a anestesia é uma necessidade que eventualmente se
impõe e não há como escapar. Nesta circunstância, acontecia o fatídico encontro
entre paciente e o malquisto anestesista, personagem indicado pelo cirurgião ou
entidade assistencial, quase sempre em cima da hora do procedimento e por vezes
ainda vestindo a máscara cirúrgica.
Mil fantasias e dúvidas
invadem a mente do paciente, vitima em potencial de uma situação nova a ser
enfrentada, potencialmente arriscada, acrescida da impossibilidade de resolução
pelo próprio individuo e dependente de um terceiro desconhecido. O que vai acontecer comigo quando eu perder a
consciência? Quem assegura que vou acordar? Vão cuidar direito de mim ou
ficarão contando piadas, lendo jornal, tomando café? E se eu acordar durante a
operação? E se a anestesia não pegar?
A anestesiologia
evoluiu, e hoje, profissionais que exercem a especialidade são médicos com
formação acadêmica multidisciplinar, trabalham com recursos tecnológicos
sofisticados, drogas extremamente seguras e estão disponíveis para esclarecer
dúvidas a qualquer momento. Dormir e acordar depois de uma anestesia já se tornou
um desafio ultrapassado. A mortalidade devido a fatores anestésicos está em
torno de 0,0005 %, índice considerado baixíssimo e altamente aceitável.
Controlada a
mortalidade, anestesiologistas passaram a ter novas funções. Além de bloquear a
consciência, aliviar a dor, monitorar o organismo, manter as funções vitais,
prover reposição de líquidos e manter a temperatura corporal, foi preciso
também reverter a herança cruel deixada por seus antepassados e reconquistar o
direito de fazer o outro dormir, mostrando-se um sentinela atento e cuidadoso,
capaz de perceber o menor sinal de dor ou perigo, provendo segurança e
tranqüilidade ao ser humano que irá se entregar em suas mãos.
Se as semelhanças entre
o sono anestésico e o sono fisiológico são mínimas, a analogia entre o acordar
abençoado e o acordar anestésico também não é tão evidente. Anestesia é uma
palavra de origem grega, que significa privação de sensações. Durante a
anestesia, são suprimidas as sensações dolorosas, táteis, olfatórias,
degustatórias e visuais. No sono fisiológico acontece justamente o contrário,
as emoções, que eventualmente são reprimidas pelo indivíduo consciente,
libertam-se durante os sonhos, dando vazão a sentimentos inconscientes.
Ao acordar da
anestesia, gradativamente as sensações vão regressando, e o paciente, em pouco
tempo, retoma sua normalidade. No acordar abençoado, as emoções liberadas nos
sonhos, podem vir à superfície ou voltar a se esconder no fundo do poço.
Depende de muitas variáveis, por isso leva o adjetivo “abençoado”, para não ser
um simples abrir os olhos acompanhado de um bom dia. Acordar abençoado
significa acordar afortunado, despertar para a vida, fazer a diferença. E todos
os dias recebemos esta dádiva. Um 2016 abençoado em cada despertar.
*Ildo Meyer
Médico. Filósofo
Clínico. Escritor. Palestrante.
Porto Alegre/RS
Comentários
Postar um comentário