SOU ANTROPÓFAGO. DEVORO
livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne e o
sangue dos que os escreveram. Os hábitos de antropófago determinam a maneira
como escolho livros. Só leio livros escritos com sangue. Depois que os devoro,
deixam de pertencer ao autor. São meus porque circulam na minha carne e no meu
sangue.
É o caso do conto "O Afogado Mais Bonito do Mundo", de
Gabriel García Márquez. Ele escreveu. Eu li e devorei. Agora é meu. Eu o
reconto.
É sobre uma vila de
pescadores perdida em nenhum lugar, o enfado misturado com o ar, cada novo dia
já nascendo velho, as mesmas palavras ocas, os mesmos gestos vazios, os mesmos
corpos opacos, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se
lembrava...
Aconteceu que, num dia
como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar.
E ele gritou. Todos correram. Num lugar como aquele até uma forma estranha é
motivo de festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até que o mar, sem
pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento de todos:
era um homem morto.
Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma
coisa a se fazer com eles: enterrar. E, naquela vila, o costume era que as
mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver
para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o silêncio era grande
enquanto o limpavam das algas e líquens, mortalhas verdes do mar.
Mas, repentinamente,
uma voz quebrou o silêncio. Uma mulher balbuciou: "Se ele tivesse vivido
entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas.
Ele é muito alto...".
Todas as mulheres,
sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.
De novo o silêncio foi
profundo, até que uma outra voz foi ouvida. Outra mulher... "Fico pensando
em como teria sido a sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das
ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada,
faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?" E elas sorriram
e olharam umas para as outras. De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra
mulher... "Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram
com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? Essas
mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher, será que elas
sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?".
Aí todas elas riram que riram,
suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se
transformando numa ressurreição: um movimento nas suas carnes, sonhos
esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos
proibidos aparecendo na superfície de sua pele, os corpos vivos de novo e os
rostos opacos brilhando com a luz da alegria.
Os maridos, de fora,
observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao
perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E
pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito,
nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam desejado.
A história termina
dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.
*Rubem Alves
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