“(...) o que se encontra lá onde ninguém o tinha
ainda encontrado (...)”
Jacques
Derrida
Uma
incerta busca para oferecer depoimentos sobre os incríveis momentos na década
de 90 me fez acreditar na possibilidade de divulgar, tal qual se apresentavam,
os desdobramentos das primeiras sessões. Hoje vejo os eventos de consultório
como instantes únicos, irrepetíveis e nem sempre possível de compartilhar.
Naqueles
dias pensava em ter um registro das primeiras repercussões: críticas e
ressentimentos, inseguranças e temores, esperanças e sonhos. Agora consigo ver
melhor as desavenças iniciais como aliadas na legitimação do novo paradigma.
Longe de desmerecer o método da filosofia clínica fortaleceram a ideia de
paradoxo com aquilo que se buscava superar.
A
conversação com amigos e colegas ia mostrando a melhor resposta para o
infortúnio das verdades satisfeitas: trabalho, trabalho, trabalho. Não tínhamos
tempo para o famigerado e interminável debate acadêmico e seus rituais
delirantes de fogueira das vaidades. A internação em nossos espaços de
atendimento buscava legitimá-los por eles mesmos. A relação de ajuda
sustentando a própria relação de ajuda.
Dessa
época as atividades no PSF (programa de saúde da família) na Vila Alto Erechim
em Porto Alegre, uma comunidade desassistida de 2.500 pessoas. No início
tínhamos um barraco velho para atender, quando um profissional entrava o outro
tinha de sair. O apoio gigantesco das agentes comunitárias, indo de casa em
casa e oferecendo filosofia clínica lotou o consultório. Uma atuação clandestina
e distante das disputas políticas da prefeitura. Um tempo de desafios e
incrível beleza.
Sua
continuidade era sustentada pelo sonho de dias melhores e na interseção com a
comunidade. Os atendimentos priorizavam a população periférica e abandonada da
capital gaúcha. Na clínica particular os desafios não eram menores.
Essa
constatação sobre a timidez das palavras para se tentar descrever os eventos da
terapia veio depois. Comecei a observar a pobreza dos exemplos quando
relatados, os quais desmereciam a atmosfera fantástica dos encontros.
Aquele
texto de teor preliminar teve sua importância como anúncio, inclusive deixando
entrevistas de haver muito mais. A disposição dos primeiros anos de consultório,
a mescla de sentimentos, percepções e desconstruções ajudam a melhorar o ser
filósofo clínico. Ainda assim, a interseção aprendiz prossegue como uma incerta
arte da reciprocidade. As leituras e releituras dos textos e contextos mostram
um velho iniciante na concepção clínica da filosofia.
Na
poética de Marcel Proust: ‘Não compreendia que misteriosa semelhança unia
minhas dores aos mistérios solenes que se celebravam nos bosques, no céu e
sobre o mar, mas sentia que sua explicação, seu consolo, seu perdão fora
proferido, e o fato de a minha inteligência não estar a par do segredo não
fazia a menor diferença, já que meu coração o entendia tão bem’.
A
elaboração do novo paradigma não vem acontecendo somente com a pesquisa
bibliográfica. A ela se associam a matéria-prima das práticas discursivas,
consultorias, aulas, clínicas. Inacreditável
saber por onde a realidade se emancipa em muitas outras. Um ponto
absurdo em que a fenomenologia das sessões acontece.
Na
releitura desse fragmento sinto a história como algo diferente, assim como sua
autoria. Até mesmo as estéticas da errância possuem historicidade e sentido
próprio. Nenhum gesto existe por si só, sua fundamentação reivindica escutas,
diálogos e interseções com a fonte de onde partiu. A epistemologia forasteira
se insinua por entremeios de uma vidência atemporal. O lugar de ruptura com as certezas também se
oferece na ocasião distraída de si mesma. A novidade contida na palavra falada
possui intencionalidade sem pressa de tradução.
A
incrível farmácia da natureza aprecia invisibilidades para se esconder e se
mostrar. Seu padrão de esquiva cuida de torna-la inacreditável aos olhos da
ciência normal. Em um jeito mundano de ser, esboça seu saber andarilho, compartilhando
indícios de uma prática para vislumbrar raridades.
À
primeira vista, parecem ser os enganos que melhor se apresentam. As
hermenêuticas da convicção são as preferidas das armadilhas do olhar. Talvez os
sussurros da inconclusão desvendem a vida extraordinária, cujos sinais se
refletem ao seu redor. Que sabe a fenomenologia das coisas possa encontrar
abrigo no vocabulário por inventar.
Essa
perspectiva de copresença dos eventos desconsiderados possui linguagem
aforística e de saber imprevisível, aprecia se oferecer no espanto dos relatos
incompreendidos. Sua ótica de lacuna revela apontamentos até então
irreconhecíveis. A expressividade assim disposta possui seus próprios rituais
na estrutura do dizer. Sem algum viés compartilhável podem ficar uma vida
inteira desmerecidos.
O
mundo longe das aparências também faz escolhas, um agora de quase tudo segue
indecifrável pela lógica das premissas. Num contexto em que nada é muito
verdadeiro, outras amanhãs se preparam.
*Hélio Strassburger in “Pérolas
imperfeitas. Apontamentos sobre as lógicas do improvável”. Editora Sulina.
Porto Alegre/RS. 2012.
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