Meu primeiro encontro com Clarice Lispector foi numa tarde de domingo na casa da escultora Zélia Salgado, em Ipanema, creio que em 1956. Eu havia lido, quando ainda vivia em São Luís, o seu romance "O Lustre", que me deixara impressionado pela atmosfera estranha e envolvente, mas a impressão que me causou sua figura de mulher foi outra: achei-a linda e perturbadora. Nos dias que se seguiram, não conseguia esquecer seus olhos oblíquos, seu rosto de loba com pômulos salientes.
Voltei a encontrá-la,
pouco tempo depois, no "Jornal do Brasil", durante uma visita que fez
à redação do "Suplemento Dominical". Conversamos e rimos, mas não
voltamos a nos ver num espaço de uns dez anos. De fato, só voltei a encontrá-la
logo após voltar do exílio, em 1977. Ela ligou para minha casa: queria
entrevistar-me para a revista "Fatos e Fotos", para a qual colaborava
naquela época.
Clarice já era então
uma mulher de quase 60 anos, marcada por acidente que resultara em sérias
queimaduras que lhe deixaram marcas na mão direita. Já quase nada tinha da
jovialidade de antes, embora continuasse perturbadora em sua natural
dramaticidade. Depois de ouvir dela algumas palavras carinhosas, decidi
revelar-lhe como me fascinara em nosso primeiro encontro.
-Você era linda, tão
linda que saí dali apaixonado.
-Quer dizer que eu
"era" linda?
-E ainda é, apressei-me
em afirmar..
Terminada a entrevista,
despedimo-nos carinhosamente, mas no dia seguinte ela ligou de novo. Queria
encontrar-me para conversar. Fui até sua casa, no Leme, e de lá fomos caminhamos
até a Fiorentina, que ficava perto.
Lembro-me que Glauber
Rocha, vendo-nos ali, veio sentar-se em nossa mesa e começou a elogiar o
governo militar. Clarice me olhava para com espanto, sem entender. Ele, depois
daquele discurso fora de propósito, mudou de mesa.
-Ele veio provocar
você, disse Clarice. Com que intenção falou essas coisas?
-Glauber agora cismou
de defender os milicos. É piração.
Depois dessa noite,
voltei a vê-la num encontro que ela promoveu em sua casa com alguns amigos,
entre os quais Fauzi Arap, José Rubem...
Foi a última vez que a
vi. A roda-viva daqueles tempo me arrastou para longe dela, em meio a problemas
de toda ordem, crises na família, filhos drogados, clínicas psiquiátricas. De
repente, soube que ela havia sido internada num hospital em estado grave.
Localizei o hospital, telefonei para o seu quarto e acertei com a pessoa que me
atendeu ir visitá-la no dia seguinte. Mas, ao chegar à redação do jornal, antes
de sair para a visita, a telefonista me passou um recado: "Clarice pede ao
senhor que não vá vê-la no hospital. Deixe para visitá-la quando ela voltar
para casa". E se ela não voltasse mais para casa? Dobrei o papel com o
recado e guardei-o no bolso, desapontado.
Àquela noite, quando
contei o ocorrido a minha mulher, ela explicou: "Clarice, vaidosa como
era, não queria que você a visse no estado em que estava". Pode ser, mas,
de qualquer forma, até hoje lamento não ter podido vê-la uma última vez.
Dois ou três dias
depois do recado, ela morria. Ao sair do banho, pela manhã, alguém me informou:
"Clarice Lispector morreu". De viagem marcada para São Paulo, entrei
num táxi que me levou pela lagoa Rodrigo de Freitas. Não poderia ir a seu
sepultamento. O táxi corria dentro de uma manhã luminosa, enquanto a brisa
balançava alegremente os ramos das árvores. Clarice morrera e a natureza o
ignorava. No avião, escrevi um poema falando nisso. Que mais poderia fazer?
Alguns meses atrás,
quando aceitei fazer a curadoria da exposição sobre ela, no Museu da Língua
Portuguesa, todas essas lembranças me acudiram. Ia ser bom voltar a pensar
nela, reler seus livros, pois é neles e só neles que é possível reencontrá-la
agora e nunca naquele saárico túmulo do Cemitério Israelita do Caju, aonde
certo dia, sob sol escaldante, fui, com Cláudia Ahimsa, visitá-la.
Não havia
Clarice nenhuma sob aquela laje de pedra, sem flores. E não havia porque, de
fato, o que Clarice efetivamente foi, o que fazia dela uma pessoa única e
exasperada, era sua patética entrega ao insondável da existência -e a
necessidade de escrever, de tentar incansavelmente dizer o indizível, mas certa
de que, ao torná-lo dizível, o dissiparia.
Não obstante, isso era
tudo o que valia a pena fazer na vida, conforme afirmou: "Quando não
escrevo, estou morta".
*Ferreira Gullar
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