O livro Invisível - sobre Ralph Ellison*
Em um célebre artigo,
intitulado The future is black (publicado no Brasil pela editora Sulina), o
escritor norte-americano Mark Dery evoca uma histórica afirmação de Greg Tate,
muito familiar para os indivíduos negros, segundo a qual “pessoas negras vivem a
ostracização que os escritores de ficção científica imaginam.”
Na tradição da
literatura norte-americana não há demonstração mais nítida e expressiva desta
suspeita do que a descrita por Ralph Ellison, no livro Homem Invisível.
Publicado em 1952, a obra conta, em primeira pessoa, a história de um indivíduo
negro tentando desesperadamente sobreviver ao racismo cotidiano. Escrito por
Ralph Ellison, um escritor negro, em um tempo em que todos os escritores eram
brancos, Homem Invisível é um dos livros prediletos do ex-presidente Barack
Obama. E de uma extensa lista de lideranças intelectuais afro-americanas.
Apesar disso, é uma
obra praticamente desconhecida no Brasil. Sua primeira tradução data de 1990
(Editora Marco Zero). Depois disso, permaneceu esgotada até a publicação da
segunda tradução, em 2013 (Editora José Olympio). Não ganhou resenhas nos
principais suplementos literários do país. Não foi destaque nos vídeos de
booktubers famosos. É, no Brasil, um livro invisível.
O brasileiro, este ser
que existe para dificultar a vida dos sociólogos, faz o que pode para preservar
seu delírio de democracia racial. Como tenho poderes paranormais, consigo ver,
daqui onde estou, o cidadão médio: tênis, óculos escuros, camiseta da seleção
Brasileira, argumentando de forma desmiolada: "Racismo não é uma
preocupação nossa. Falar que tem racismo aqui é macaquice, querer copiar os
americanos, sabe? Aqui é diferente. Aqui o preconceito é social, só. Pode ver,
os negros são tratados como se fossem seres humanos. Por que, então, a gente ia
precisar de um livro cheio de ódio, onde os negros praticam racismo
inverso?"
No país das trevas, as
pessoas têm dificuldade cognitiva de chamar as coisas pelo nome, e bem antes de
Donald Trump já haviam inventado um mundo com fatos alternativos, pós-verdade,
oxímoros e argumentos construídos sob a égide da ignorância reluzente. Sobre o
racismo criaram sua própria narrativa: o melhor modo de acabar com ele é
parando de falar nisso.
Em suma: contra a
reação das vítimas, o melhor remédio seria o silêncio dos ofendidos. É por isso
que dificilmente você ouviu falar em Ralph Ellison. Esconderam de você um
livro. E só escondem de você coisas que não querem que você veja. E tudo aquilo
que não querem que você veja é precisamente aquilo que você necessita ver.
Quanto a mim, acredito
que Ralph Ellison rompeu a fronteira cultural da literatura norte-americana de
prestígio e o fez com uma obra que não representava uma ruptura estética (nada
que pudesse sugerir, entretanto, o nascimento de uma nova literatura, uma
literatura negra, cujo grau de exotismo poderia exercer algum componente
sedutor sobre a crítica caucasiana). Acredito que Homem Invisível encaixa-se
com tranquilidade na cauda longa do modernismo, tendo maiores afeições com
Ulisses do que com a Cor Púrpura, para efetuar uma comparação em relevo.
Embora, é claro, seja
um grande construtor de cenas, Ellison não se dedica a um realismo em que os
autores necessitam explorar as decepções do real para encobrir a ausência de
potência criativa. Ele é mais sofisticado, e se localiza mais na linha de um
Faulkner, em quem todas as suas raízes são expostas através de rituais
cuidadosos, que se apresentam ironicamente como encenações cujo desejo aparente
seria ocultá-las. Seu texto é fluido, mas alegórico; reto, mas sinuoso;
palavroso, mas enxuto; caucasiano, mas negro.
Acredito, por fim, que
um livro que permanece vivo, mesmo sessenta e cinco anos depois de ter sido
publicado, é um livro que merece ser lido. Mas isso sou quem acha; eu, um
sujeito que não usa camisas da seleção Brasileira, que não coloca ketchup na
pizza, que não toma chimarrão, que não sente pena de Eike Batista.
Você certamente achará
outras coisas em Homem Invisível. Coisas suas. Coisas grandes. Você verá aquilo
que eu não vi. Você encontrará respostas
que estão lá somente à sua espera, na linguagem jazzística, no ritmo alucinado,
na inteligência viva da melhor obra que a literatura afro-americana já
produziu. Homem Invisível vai, sob um aspecto muito específico, salvar sua
vida.
Há livros assim.
*Prof. Dr. Luiz Maurício Azevedo
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