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Problemas de casamento*


Aconteceu com meu pai, e só fui saber agora, dois anos depois do seu falecimento. Certa vez uma noiva ao entrar na igreja, desencadeou uma crise de falta de ar tão intensa, que precisou ser levada ao hospital. Foi atendida por meu pai, especialista em asma e alergia, porém não conseguiu se recuperar a tempo de retornar à cerimônia. Infelizmente o casamento teve que ser cancelado. Convidados e familiares ansiosos, constrangidos e preocupados aguardaram na igreja até receberem a noticia de que a noiva passava bem e remarcaria uma nova data para o evento. Imaginem a situação do noivo.

Passada a crise, Anita, a noiva, iniciou um tratamento medicamentoso a base de vacinas dessensibilizantes e, concomitantemente, uma terapia de apoio, pois ataques de asma podem ser provocados por abalos emocionais. Combinaram que a data do matrimônio seria marcada quando médico, psicólogo e noivos estivessem tranqüilos de que aquela cena não mais se repetiria.

Três meses depois, Anita casou sem intercorrências, escoltada por meu pai que, de prontidão, sentava de modo conveniente na primeira fila. Zeloso, carregava em uma das mãos sua maleta de médico repleta de remédios, e, na outra, carinhosamente o braço de minha mãe, que o acompanhava na ocasião. Durante a festa os noivos vieram agradecer a atenção dedicada, lamentando que meu pai não pudesse ter vindo acompanhado da esposa, trazendo em seu lugar a filha.

Não perceberam a mancada, mas antes de voltar para casa, meu pai parou numa farmácia e comprou tintura para cabelos. Precisava dar um jeito de esconder sua cabeça branca e aparentar ser marido, e não pai de minha mãe.  Pintou os cabelos e ficou casado até o fim de sua vida.

Este outro episódio aconteceu com um colega terapeuta, durante o atendimento a um noivo nas vésperas de seu casamento. Seu problema eram os intestinos, que entravam em desarranjo toda vez que ficava nervoso. Com a aproximação do matrimônio, sua ansiedade aumentava e tinha certeza que durante a cerimônia não conseguiria segurar seu intestino, fazendo fiasco em pleno altar, à frente de todos convidados. Esta insegurança psicológica e intestinal fazia com que pensasse até mesmo em cancelar a solenidade, casando apenas no cartório.

A terapia consistiu em roteirizar todos os passos do noivo, desde a porta da igreja até o altar. Analisaram onde, em caso de emergência, seria o banheiro mais próximo, ensaiaram cada detalhe em minúcias. Quantos passos precisaria dar, quem manteria o caminho desimpedido, até onde conseguiria se segurar, como o padre contemporizaria a situação, como a noiva se comportaria.

Praticaram, treinaram, repetiram exaustivamente até que o noivo, na medida do possível, sentisse firmeza e confiança. Na hora H, tudo funcionou perfeitamente, noivo e noiva casaram com naturalidade. Banheiro permaneceu intocável e esquecido. Intestino nunca mais desarranjou e o casamento permanece seguro.

Quem dera todos os problemas de casamento se resumissem a pulmões e intestinos gritando por socorro ou a cabelos pedindo por tintura. Medicamentos e apoio psicológico dariam conta desses males. Entretanto, sabemos que o furo é mais embaixo. O problema não está na cerimônia, sequer no casamento propriamente dito, instituição que rotula o relacionamento, estabelece compromissos formais e exige solenidade. Muitos confundem casamento com amor. Assinam documentos, realizam liturgia, convocam testemunhas, mas não estão convictos do sentimento ou do passo que estão prestes a dar. Então o corpo se manifesta, implora por ajuda e pede um tempo para entender a dubiedade estabelecida. Eis o quebra-cabeça. As alianças trocadas no altar não precisam ser de ouro, diamantes ou ter nomes gravados. Podem até ser invisíveis, mas é vital que sejam autênticas, reais e desafiadoras. O resto é detalhe.

*Ildo Meyer
Médico. Escritor. Palestrante. Filósofo Clínico
Porto Alegre/RS

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