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Mostrando postagens de novembro, 2017

Uma mitologia das aparências*

A notícia mais comentada no Brasil nesta segunda-feira foi um erro de goleiro num jogo de futebol. Sintoma da mais grave doença do espírito brasileiro: a ausência de desejo de compreender qualquer coisa que não seja vistosa aparência. Nossa filosofia profunda tornou-se pirrônica desde o fim do século XIX. Como os pirrônicos, recusamo-nos a procurar qualquer verdade além do que o mundo espetacular da mídia nos oferece, pois consideramos que nada é, no fundo, verdadeiramente digno, nobre ou real. Assim, tomamos a liberdade de viver como todos, sem nenhuma problematização, resolvendo tudo com "jeitinho", o que é exatamente o que faziam os pirrônicos no mundo helênico. Será essa recusa de fundamento uma consequência do positivismo de nossas classes militares e científicas do fim dos anos 1800? Será essa negação da metafísica um resultado do antiintelectualismo dos românticos franceses que influenciaram os nossos escritores desde então? Talvez nossa cabeça de ve

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"(...) o homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que, precisamente por ter feito tantas experiências e aprendido graças a tanta experiência, está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e delas aprender" "(...) o homem compreensivo não sabe nem julga a partir de um simples estar postado frente ao outro de modo que não é afetado, mas a partir de uma pertença específica que o une com o outro, de modo que é afetado com ele e pensa com ele" "(...) o horizonte do presente está num processo de constante formação, na medida em que estamos obrigados a põe à prova constantemente todos os nossos preconceitos" "A essência da pergunta é a de abrir e manter abertas possibilidades" "O verdadeiro objeto histórico não é um objeto mas é a unidade de um e de outro, uma relação na qual permanece tanto a realidade da história como a realidade do compreender histórico" "Quando se ouve

A leitura e o amor impossível*

Eu sabia O que mais ninguém sabia Que os livros que ela lia Ela não somente lia Transformava-se nos personagens De todos os livros que lia Eu sabia, ela era ela E era todos os outros que lia E ela sorria e parecia Que olhava para longe Para um buraco sem fundo. E aconteceu que houve Um tempo muito distante Um tempo bem lá para frente Em que o tempo caducou E se dizia por aí Que ela havia caducado Enfim achara o seu amor Impossível..!! *José Mayer Filósofo. Livreiro. Poeta. Especialista em Filosofia Clínica. Porto Alegre/RS

Traduzir-se*

Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte? *Ferreira Gullar

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"Feitiçaria é o mundo onde as palavras têm poder. O feiticeiro fala e a palavra, sem o auxílio das mãos, realiza o que diz. Deus diz 'Paraíso!', e um jardim de delícias aparece. A bruxa diz 'Sapo!', e o príncipe se transforma em sapo. Outro é o mundo da técnica e da ciência: ali as palavras não têm poder. As palavras podem ser ditas à vontade que nada acontece" "Não gosto de conclusões. Conclusões são chaves que fecham. Cada conclusão faz parar o pensamento. Como nos livros de Agatha Christie: resolvido o crime, nada sobre em que pensar. E não adianta ler o livro de novo. Quando o pensamento aparece assassinado, pode-se ter a certeza de que o criminoso foi uma conclusão" "A ciência normal', diz T.S. Kuhn, 'não procura nem novidades de fato nem de teoria. Quando é bem-sucedida, ela não encontra novidades'" "Os poetas buscam as palavras que moram no silêncio" "Palavras de ordem não toleram as br

Fenomenologia de fragmentos*

“A utopia é o campo do desejo, diante da Política, que é o campo da necessidade.”Roland Barthes A irreverência de Nietzsche, em fazer a transvaloração de todos os valores levou o filósofo a transbordar o século XX com aforismos, e um estilo de pensar sem as rédeas da cavalaria oficial do pensamento racionalista. A idiossincrasia do pensador, dado à polêmicas, foi o que estigmatizou-o, porém seu estilo é uma nova forma de pensar a realidade. Atrevidamente sempre atentou contra a moral. No Crepúsculo dos Ídolos, o pensador ataca: "Se nós, os imoralistas, causamos dano à virtude? Tanto quanto os anarquistas o fazem aos príncipes. Só depois que se atira contra eles é que eles voltam a estar firmemente assentados em seu trono. Moral da história: é preciso atirar contra a moral." É preciso passar da lógica cartesiana, aristotélica para uma nova forma de pensar a cultura. Michel Maffesoli, herdeiro do pensamento fenomenológico e da sociologia compreensiva, f

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos" "Eu me sei assim como a larva se transmuta em crisálida: esta é minha vida entre vegetal e animal" "Lóri quis transmitir isso para Ulisses mas não tinha o dom da palavra e não podia explicar o que sentia ou o que pensava, além de que pensava quase sem palavras" "De algum modo já aprendera que cada dia nunca era comum, era sempre extraordinário. E que a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele. Ela queria o prazer do extraordinário que era tão simples de encontrar nas coisas comuns: não era necessário que a coisa fosse extraordinária para que nela se sentisse o extraordinário"  "(...) viver é tão fora do comum que eu só vivo porque nasci" "(...) Agora ela está toda igual a si mesma" *Clarice Lispector in " Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres ". Ed. Rocco

A invenção da palavra*

“Eu vejo o mundo através de minhas palavras.” Carlos Nejar A textura dos dias sugere a conjugação de um andarilho com o devir das quimeras. Ao desler o mundo ao seu redor, sua maldição consiste numa percepção que se refugia na ilegibilidade. À deriva dos consensos, seu viés discursivo aprecia surgir num ponto entre um delírio e outro. Ao derivar ideias complexas de ideias complexas, afronta a sintaxe conhecida. Um teor assim mencionado, antes de permitir algum deciframento, rascunha-se num dizer impregnado de meias-verdades, subterfúgios, errâncias discursivas. Quando chega a ter definição, já é saber mumificado. Em Filosofia Clínica é comum um acolhimento compreensivo ao ser incomum. No esboço dessa linguagem que transborda, um dizer busca descrever-se. A referência indireta reverencia a vida em estado nascente. Sua verdade possui rituais de singularidade. Um discurso pessoal em territórios de intimidade. Num devir caótico, sua antevisão desestruturada aponta realid

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"(...) Bacon: (...) o entendimento humano é como um espelho falso, que, recebendo raios de modo irregular, distorce e descolore a natureza das coisas, que se misturam à própria natureza do espelho" "Não somos a medida das coisas, mas os logrados pelas coisas. A Caverna é pessoal, uma toca fechada, isolada do mundo comum" "Samuel Johnson (...) ensinou-nos que a essência da poesia é a invenção, no sentido de descoberta" "(...) O que há de melhor e mais maduro em nós há de responder, integralmente, àquil que pretendemos enxergar" "Não temos palavra adequada para explicar Shakespeare: ele escapa a qualquer categorização disponível" "Lemos, penso eu, para sanar a solidão, embora, na prática, quanto melhor lemos, mais solitários ficamos" "Nada explica Shakespeare, e nada pode reduzi-lo a uma explicação" "Contemplamos na vasta escritura de Cervantes aquilo que já somos" "V

Limites ou horizontes?*

​- Nosso relacionamento é aberto ou fechado? - Por mim tanto faz. - Desculpa, mas para mim não é assim. Só consigo me relacionar se houver fidelidade conjugal. Relacionamento fechado. - OK, combinado.Vamos fechar, mas precisamos esclarecer algumas questões. Se meu personal trainer convidar para um café depois da aula e eu aceitar, isto é considerado infidelidade? - Claro que não. - Preciso lhe contar sobre o café? Não aconteceu nada, conversamos sobre dieta e exercícios. - A principio, não é necessário que eu saiba tudo sobre sua vida. Tudo certo querida. - Na outra semana, o personal me convida pra jantar.  Não vai rolar nada proibido, ele só quer me apresentar um programa de treinamento para a maratona de abril.  Preciso lhe contar? Você acha isto uma forma de infidelidade conjugal? - Confio em você querida, não precisa contar. - Quinze dias depois, você vai viajar e o personal me convida para assistir um filme sobre a maratona de Paris em

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"Um apetite de vida aumenta com o ardor das palavras. O poeta já não descreve - exalta. É preciso compreendê-lo seguindo o dinamismo de sua exaltação. Entra-se então no mundo admirando-o. O mundo é constituído pelo conjunto das nossas admirações" "Os poetas, em seus devaneios cósmicos, falam do mundo na linguagem do mundo. As palavras, as belas palavras, as grandes palavras naturais, acreditam na imagem que as criou. Um sonhador de palavras reconhece numa palavra do homem aplicada a uma coisa do mundo uma espécie de etimologia onírica"   "As palavras do mundo querem fazer frases. Sabe-o bem o sonhador que, de uma palavra que sonha, faz surgir uma avalancha de palavras" "As cosmogonias antigas não organizam pensamentos, são audácias de devaneios, e para devolver-lhes a vida é necessário reaprender a sonhar" "E que vem a ser um belo poema senão uma loucura retocada ? Um pouco de ordem poética imposta às imagens aberrantes

A brisa e o coração*

Uma brisa suave Soprava vindo do sul Trazendo boas lembranças Mas parecia existir Entre nós dois Um muro de ar! Uma ponte que ruíra Afogando nossos abraços. De agora em diante O passado seria Levado pelas águas O futuro jogado Na direção dos ventos. Sentia, todavia Toda vez que a via sorrir Uma imensa gratidão E sabia do dia Que o seu coração Se lhe abriria... *José Mayer Filósofo. Livreiro. Poeta. Especialista em Filosofia Clínica. Porto Alegre/RS

Noruega cria primeiro Hospital Psiquiátrico do mundo sem fazer uso de medicamentos***

Quem possui uma ideia sobre saúde mental, provavelmente não concebe a existência dela sem medicação. Na sociedade contemporânea, praticamente todas as "doenças" mentais são susceptíveis de serem tratadas por drogas, independentemente do grau, muito menos quais são suas particularidades em relação à história de vida do paciente. Como resultado de uma maneira de entender os conceitos de saúde, paciente, medicina e bem-estar, entre outros, acredita-se que todos os seres humanos podem ser tratados da mesma maneira e que, por exemplo, uma depressão é idêntica em uma mulher de 50 anos e em um adolescente de 16. Em um homem que perdeu sua esposa ou uma jovem que não pode dormir à noite. E sob essa premissa, a todos são oferecidos a mesma solução: uma droga cuja promessa é trazer "equilíbrio", o que quer que isso represente. Além disso, essa compreensão da saúde mental é tão dominante que pensar em outras alternativas pode ser considerado um absurdo, algo realmente

A Fala Cotidiana contra a Verdade*

“O mundo inteiro nos é oferecido, mas por meio do olhar.” Maurice Blanchot Por aqui, no país de orientação religiosa pós-liberal, na capital, Porto Alegre, um movimento pela moralidade parece estar além dos deuses; no lugar das decisões mitológicas prevalece a orientação de ordem político-social-moralista. O que deseja implantar como normal e, quiçá, lei, no futuro, vedar olhos em nome de um pretenso desejo de punição aos que pensam contrário. Fadiga dos tempos, o moralismo toma conta do corpo que pensa sem a razão e leva à força toda a diferença na guilhotina do espetacular. Em tempo de democracia o que cair na rede é válido, até as frustrações de um espírito conservador, que, em forma de ironia, sacraliza o cotidiano. Para eles, os moralistas, a arte deve ser controlada por guardiães do bom costume, como se o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, além de pastor, tomasse o controle dos corações e dissesse o que é o lado bom e o lado mau das cabeças. Na cultura Ocide

Fragmentos de clínica e poesia existencial*

"(...) é preciso ser bem ousado e criativo para moldar uma nova terapia para cada paciente" "Acho que Belle gostou de mim porque eu a tratava como gente. Fiz exatamente o que o senhor está fazendo agora, e quero lhe dizer, dr. Lash, que gosto de como o senhor o faz. Não olhei nenhum dos gráficos dela. Fui às cegas, queria ser inteiramente novo. Belle nunca foi um diagnóstico para mim, não era uma personalidade limítrofe, nem um transtorno alimentar, nem um transtorno compulsivo ou anti-social." "(...) espero que nunca me torne um diagnóstico para o senhor" "(...) sei que vocês que estão se formando agora e toda a indústria de psicofármacos vive do diagnóstico" "Já parou para pensar como é fácil fazer um diagnóstico na primeira vez que examinamos um paciente e como fica mais difícil à medida que o conhecemos melhor ?" "Pacientes limítrofes são manipuladores ? Foi o que você disse ? Ernest, você nunca será um

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"No líquido, os opostos passam mais facilmente um no outro. O líquido é o elemento do Phármakon. E a água, pureza do líquido, se deixa o mais facilmente, o mais perigosamente, penetrar e depois de corromper" "Lembrando Górgias: 'A potencia do discurso tem a mesma relação com a disposição da alma que a disposição das drogas com a natureza do corpo. Da mesma forma que algumas drogas evacuam do corpo alguns humores, cada uma o seu, e umas estancam a doença, outras a vida; do mesmo modo alguns discursos afligem, outros revigoram, uns aterrorizam, outros animam os auditores; outros, por uma má persuasão, drogam a alma e a enfeitiçam" "(...) o lógos é um ser vivo selvagem, uma animalidade ambígua. Sua força mágica, farmacêutica, deve-se a esta ambivalência, e isso explica que ela seja desproporcionada a esse quase nada que é uma fala"  "Ainda Górgias: 'Os encantamentos inspirados pelos deuses através das palavras trazem o prazer, af

Fragmentos Filosóficos, Delirantes*

"Assim como a vida é sempre mais rica que as teorias que pretendem expressá-la, uma história é sempre mais que mera ilustração das teorias de quem a conta" "Manipulando e organizando astutamente os ingredientes da realidade, o narrador construiu outra realidade" "Cada época tem a sua irrealidade: seus mitos, seus fantasmas, suas quimeras, seus sonhos e uma visão ideal do ser humano que a ficção expressa com mais fidelidade que qualquer outro gênero" "Basta um fantasma numa reunião para que todos os presentes adquiram um ar fantasmal, basta um milagre para que a realidade se torne milagrosa" "(...) todas as ficções fazem o leitor viver 'o impossível', tirando-o do seu eu particular, ultrapassando os limites da sua condição, e fazendo-o compartilhar, identificado com os personagens da ilusão, uma vida mais rica, mais intensa, ou mais abjeta e violenta, ou simplesmente diferente daquela em que estão confinados nesta

Em outras palavras*

Um indício do novo padrão existencial é a desestruturação do raciocínio. Noutras palavras, a vida se reapresenta numa perspectiva diferente. Um esboço por onde o vocabulário transgride suas origens. Reconhecíveis por fora pela aceitação, discriminação ou incompreensão, sua tradução aprecia acolher novos territórios. Essa inadequação linguística anuncia um desconhecido se aproximando. O universo das novas expressões insinua uma estética própria. Sua pronúncia, nem sempre legível às anterioridades, convive em vias marginais, nos arredores da literalidade. Ao se aproximar dessa fonte de equivocidades, é possível sentir a singularidade tentando acontecer. Aquilo sem possibilidade numa língua, ao refugiar-se na imensidão de si mesmo, quando encontra a ocasião, o lugar, os meios, pode ressurgir como transgressão dos próprios limites, uma suspeita de algo por vir. Em outras palavras, aquilo indescritível numa semiose passa a ter visibilidade compreensiva noutra. As lonjuras e

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