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Uma mitologia das aparências*


A notícia mais comentada no Brasil nesta segunda-feira foi um erro de goleiro num jogo de futebol.

Sintoma da mais grave doença do espírito brasileiro: a ausência de desejo de compreender qualquer coisa que não seja vistosa aparência.

Nossa filosofia profunda tornou-se pirrônica desde o fim do século XIX. Como os pirrônicos, recusamo-nos a procurar qualquer verdade além do que o mundo espetacular da mídia nos oferece, pois consideramos que nada é, no fundo, verdadeiramente digno, nobre ou real. Assim, tomamos a liberdade de viver como todos, sem nenhuma problematização, resolvendo tudo com "jeitinho", o que é exatamente o que faziam os pirrônicos no mundo helênico.

Será essa recusa de fundamento uma consequência do positivismo de nossas classes militares e científicas do fim dos anos 1800? Será essa negação da metafísica um resultado do antiintelectualismo dos românticos franceses que influenciaram os nossos escritores desde então?

Talvez nossa cabeça de vento tenha sido feita justamente por essas duas forças intelectuais "progressistas" do século XIX - o mundo do positivismo científico e do romantismo literário.

Pergunto-me se essas duas forças pirrônicas que estão na origem de nosso pensamento macunaímico não teriam sido catalisadas pelo teatral golpe fundador da República e pela resposta dialeticamente magnânima e covarde do imperador. Pergunto-me isso porque a partir desse evento crucial a política brasileira rompeu com todo o heroísmo, com todo o valor, com toda a ideia, adotando o pragmatismo pirrônico, o que naturalmente acabou por contaminar de pirronismo toda a vida nacional - não só na política, mas também na educação, na imprensa e, finalmente, nas nossas relações pessoais.

Só o que importa, desde então, é o que reluz no mundo mitológico das aparências. Nada que esteja escondido das luzes dos palcos tem valor; nada que não seja espetáculo tem a menor relevância para o espírito brasileiro.

A repercussão da falha do goleiro Muralha nos revela de onde viemos: dos movimentos pirrônicos de negação da profundidade metafísica. Ela revela também quem desejamos nos tornar: o país do futebol. Vencer um torneio de futebol - e nos imaginarmos por isso invejados por todos os outros povos - é o nosso mais caro e profundo projeto de nação. Para nossa imensa desgraça.

*Prof. Dr. Gustavo Bertoche
Filósofo. Escritor. Filósofo Clínico
Teresópolis/RJ

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