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Os convites da poesia*

O poeta, ao se alimentar de poesia, reescreve cotidianos, ultrapassa os limites do espaço-tempo, reencontra ser e não-ser. Sua provisoriedade fugaz deixa vestígios por onde andou, versão translúcida a percorrer-se nos labirintos de sua subjetividade em movimento. Não se sabe ao certo sobre a natureza desse convite: se é recordação, esquecimento ou pretextos outros. É possível ao sujeito desmerecer esses textos de origem difusa, no entanto, a atração irresistível da ótica precursora sobrevive em novo vocabulário, ainda que em cotidianos desmerecidos. Uma sedução se oferece entremeios de recordar e registrar os ímpetos que a palavra tentou traduzir. A descrição parece colocar na ponta da caneta algo mais, nem sempre acessível aos rituais do pensamento. Talvez os esboços da irrealidade aconteçam para que se consiga viver melhor. A estética que alimenta as fontes parece esparramar, generosamente, seu fluxo de versos numa poética a resignificar vicissitudes em dias de sol. A poesi

A levitação de Clarice*

            Um dia Clarice liga dizendo que aceitou dar um depoimento no Museu da Imagem e do Som, mas fazia questão que Marina e eu fôssemos os entrevistadores. Eu a conheci em 1962 quando ela foi a Belo Horizonte lançar A maçã no escuro, na livraria Francisco Alves, e o gerente da livraria o professor Neif Safady convidou-me, eu ainda estudante de Letras, para fazer uma espécie de discurso de apresentação dela. Lembro-me da primeira visão que tive daquela linda e consistente mulher no hall do Hotel Normandy.             Estranhamente, tinha só meia dúzia de pessoas no lançamento. Depois disto fomos jantar num restaurante chinês e me lembro de que Ivan Ângelo estava conosco. E como seguíssemos durante a sobremesa falando de A maçã no escuro o garçom nos interrompeu constrangido explicando que a  maçã estava meio escura, mas não estava estragada.             O convite para aquela entrevista no MIS, que ocorreu um ano antes de sua morte, era um pacto de amizade. Essa relação afeti

Cachoeira*

Tomar um banho de cachoeira para purificar Deixar a água fria cair na cabeça E levar córrego abaixo Todos os medos e anseios de uma vida; Ficar em contato com a natureza E sentir o cheiro das coisas Sem se preocupar com o que acontece ao redor Pois o que acontece nada mais é Do que a vida acontecendo, Sem nenhuma interferência E sem nada a ser feito. Estar sozinho e sentir-me bem; Estar em contato com o ar natural; Refletir e tentar encontrar os pontos-chave; Curtir a solidão.   *Vinicius Fontes Filósofo, estudante de filosofia clínica Rio de Janeiro/RJ

Entender os Outros*

Nós combatemos a nossa superficialidade, a nossa mesquinhez, para tentarmos chegar aos outros sem esperanças utópicas, sem uma carga de preconceitos ou de expectativas ou de arrogância, o mais desarmados possível, sem canhões, sem metralhadoras, sem armaduras de aço com dez centímetros de espessura; aproximamo-nos deles de peito aberto, na ponta dos dez dedos dos pés, em vez de estraçalhar tudo com as nossas pás de catterpillar, aceitamo-los de mente aberta, como iguais, de homem para homem, como se costuma dizer, e, contudo, nunca os percebemos, percebemos tudo ao contrário. Mais vale ter um cérebro de tanque de guerra. Percebemos tudo ao contrário, antes mesmo de estarmos com eles, no momento em que antecipamos o nosso encontro com eles; percebemos tudo ao contrário quando estamos com eles; e, depois, vamos para casa e contamos a outros o nosso encontro e continuamos a perceber tudo ao contrário. Como, com eles, acontece a mesma coisa em relação a nós, na realidade tudo é uma i

As dores e as delícias do estudo da filosofia clínica!*

Andei perdida de textos escritos, pensei que esse lado escritora meu havia se perdido por entre a vida corrida do dia a dia. As palavras iam e vinham na minha mente, mas eu não conseguia capturá-las com precisão. Terminando a pós esse ano me deparo com o trabalho final e petrifico entre mil e uma ideias. Conflitos, incertezas, questionamentos, dúvidas quanto a tudo o que aprendi e tudo que experienciei... Sinto-me mais conhecedora das minhas sombras e da minha luz. Entretanto, questiono o porquê dessa escolha dentre tantas outras que envolvem a filosofia. Sempre tive vocação para as questões existenciais, seja na minha representação de mundo, como na representação de mundo de outros. Mas vir a ser - filósofa clínica - é uma tarefa delicada que me faz temer muitas coisas. Ser cuidadora é algo muito frágil e precioso.  Tenho percebido carências tão primárias nas pessoas com as quais convivo que penso se realmente há uma segurança de "melhor viver" através de qualqu

Homenagem a Cervantes*

Na estepe de Castela o homem mede a sede, Mede o sol, desdém e força. Na estepe de Castela O homem mede suas malandanças, Caminha com a rudeza a tiracolo, Na estepe de Castela Campos desnudos, vento e argila, Céu côncavo, cifrado, Determinam o espaço substantivo, O estilo do silêncio: E o silêncio cria o homem de Castela. Armado por cinquenta anos de silencio Teu herói marcha com seu escudeiro Que não é seu duplo hostil ou lado oposto, Antes parte integrante de si mesmo. Não precisou marchar além da Espanha. Ao alcance da mão temos o homem, o mundo, Mesmo medidos num espaço angusto. Paralelamente, no teu livro total Se come terrestre experiência. No espaço e na medida de Castela, Na solidão do ar absoluto de Castela Distingui minha medida temporal. O homem foi criado para se conhecer circunscrito, Seus ângulos e arestas o definem. Castela interior que me demarcas, Correspondes à outra Castela clássica, Ameaçada Castela: aqui a indústria Já inaugura sua

Personagem*

“Eu sou...” Depois desse “Eu” geralmente vem uma definição que pode denunciar mais ou menos o que a pessoa tem de si mesma. Algumas pessoas ainda dizem no lugar da palavra “Eu”: as pessoas, a gente, nós, etc. São pessoas que falam de si mesmas na terceira pessoa, ou seja, de forma indireta definem a si mesmos. Essas definições em maior ou menor grau interferem na maneira como a pessoa conduz sua própria existência.  Quando o que uma pessoa acha de si mesma se liga a um personagem existencial que ela exerce pode-se dizer que ela se identifica naquilo que faz. Um exemplo disso são profissionais como advogados ou médicos que exigem que as pessoas se dirijam a eles como Dr. Fulano, ou seja, o Dr. define a pessoa. O mesmo acontece com os professores, que mesmo em uma rodinha de conversa no fim de semana são “professores fulanos”. A ligação entre os papeis que a pessoa vive e o que ela acha de si mesma em alguns casos acaba soldando e ela passa a ser o papel que exerce. O que el

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