Pular para o conteúdo principal

Postagens

O Cristo subterrâneo*

Descubro um Cristo secreto Que nasce na Espanha súbito. Não é o Cristo vitorioso Dos afrescos catalães, Nem o Cristo de Lepanto Suspenso por uma torre De espadas, velas, paixões. Não investe uma colina, Não brilha no meio do altar Entre ornamentos de prata. Nem no palácio dos ricos, Nem no báculo dos bispos. É um Cristo quase secreto Que nasce das catacumbas Da Espanha não-oficial. Nasce da falta de pão, Nasce da falta de vinho, Nasce da funda revolta Contida pela engrenagem Da roda de compressão. Nasce da fé maltratada, Vagamente definida. É um Cristo dos operários Atentos, em pé de greve, Filhos de outros operários Mortos na guerra civil. É um Cristo dos estudantes Sem dinheiro para as taxas. É um Cristo dos prisioneiros Que no silêncio cultivam A pura flor da esperança. É um Cristo de homens-larvas, Famintos, inacabados, Morando em covas escuras De Barcelona e Valência. É um Cristo de experiência De padres inconformistas Que não

Clarividências*

Existem eventos onde é possível antever o que ainda não é sendo. Em uma lógica a priori, nem sempre cabível nalguma racionalidade das evidências concretas, atua como uma premonição ou mediação sem palavras. Seu teor de caráter difuso possui algo mais a superar o aqui_agora conhecido. Um futuro imperfeito se antecipa ao que deveria ser.   Seu teor de anúncio esparrama-se com os termos agendados no intelecto. Esse rumor clarividente costuma desorganizar o chão existencial onde a vida mecânica se desenrola. Uma série de indícios vão surgindo na visão inesperada de algo irreconhecível. Perplexidade diante de um amanhã_agora_passando. A maior parte desses acontecimentos se dá na interseção entre o sujeito, suas circunstâncias existenciais e o instante fugaz. Assim a epistemologia se parece com um microscópio ao contrário. Sua tez se aproxima de algo a preencher uma lacuna, até então, imperceptível de ser lacuna. A atenção busca significar essa distorção na forma de pressentimento

Barbacena*

Barroco, gótico, ornamento, floreio. Casas-palácio com hortênsias, cães de guarda fixos uivando nas bordas do telhado, jardins em ziguezague e escadas glamourosas: a beleza que o próprio terreno faz pra gente ver, nas casas subindo o morro, em vários patamares.  Mas a arquitetura também pode doer. A frieza das salas de aula brancas por toda parte. Comunicação, só nos murais. A frieza de ar, apenas ar, onde faltam pessoas em seu sentido completo. Como cascas das vagens de sibipiruna, que estalam secas, as encontramos salpicadas pelo campus. Mas onde estão elas, em seu todo? A visita ao Museu da Loucura me tocou fundamente, talvez mais ainda depois, já em casa, percebendo as dificuldades de convívio na família. Num livro em que médico e paciente descrevem sua experiência para além da prática psiquiátrica, Viagem através da loucura, encontro um alento para minha tese, vivida na carne. “Na maioria dos casos, a pessoa diagnosticada como ‘doente mental’ é o bode expiatório emoci

Deus, que será de ti ?*

Que farás tu, meu Deus, se eu perecer? Eu sou o teu vaso – e se me quebro? Eu sou tua água – e se apodreço? Sou tua roupa e teu trabalho Comigo perdes tu o teu sentido. Depois de mim não terás um lugar Onde as palavras ardentes te saúdem. Dos teus pés cansados cairão As sandálias que sou. Perderás tua ampla túnica. Teu olhar que em minhas pálpebras, Como num travesseiro, Ardentemente recebo, Virá me procurar por largo tempo E se deitará, na hora do crepúsculo, No duro chão de pedra. Que farás tu, meu Deus? O medo me domina. * Rainer Maria Rilke

Marionetes*

“Valorize os seus limites e por certo não se livrará mais deles” (Richard Bach) Somos seres complexos e dinâmicos, moldados por circunstâncias e crenças que coexistem e são tão incontáveis quanto as estrelas no céu, que brilham divinamente alheias a nossa vontade. Elas (as estrelas) se infiltram pelas existências como a bruma penetra o vazio e preenchem de sentido o que lhe convém, não necessariamente a favor daqueles a quem iluminam, mas sempre em movimento e com um delicioso toque de mistério no ar. Somos também seres bizarros, suspensos por fios imaginários e à mercê de intenções que vasculham territórios – supostamente invioláveis – invadindo-os e arrebatando-os de sua frágil plasticidade. Ao cavalgar unicórnios delirantes pelas infindáveis e confortáveis redes, avança-se e penetram-se entrelinhas de um cotidiano fluido e surreal, composto de seres ávidos por utopia, que em muitos momentos não se importam em transgredir essências através de superficialidades. Tra

Doente, normal ou eu?*

Uma das discussões mais presentes no cotidiano das pessoas é sobre o que é a doença. Pode-se procurar a definição em diversos lugares, inclusive na internet. Doença é, em resumo, um distúrbio das funções de um órgão, da psique ou de um organismo. Então eu posso ter um coração doente, sofrer de uma doença mental ou sofrer de uma doença física. Parece simples, mas não é.  Quando olho apenas para um órgão e percebo que ele tem um distúrbio, por exemplo, meu coração funciona incorretamente e eu tenho pressão alta, pode-se dizer que tenho um órgão doente. Quando eu sofro de uma mania repetitiva, faço várias vezes a mesma coisa, nesse caso posso ser diagnosticado como transtorno obsessivo compulsivo. Neste caso, considera-se que estou com uma doença psíquica. Quando tenho um distúrbio sistêmico no meu corpo, como uma infecção, meu corpo está doente. O outro lado da discussão é sobre a normalidade. Não há como falar em doença sem falar em normalidade. A definição de normal encont

Perdas e ganhos*

"Não sou a areia onde se desenha um par de asas ou grades diante de uma janela. Não sou apenas a pedra que rola nas marés do mundo, em cada praia renascendo outra. Sou a orelha encostada na concha da vida, sou construção e desmoronamento, servo e senhor, e sou mistério. A quatro mãos escrevemos o roteiro para o palco de meu tempo: o meu destino e eu. Nem sempre estamos afinados, nem sempre nos levamos a sério." *Lya Luft

Paciência Teórica*

Querido leitor, que você esteja bem.  Hoje vamos refletir sobre paciência teórica.  Uma vez li um pensamento que realmente não recordo a sua autoria, que dizia: “Aprender, aprender, aprender... sempre!” Confesso que achei simples e profundo e nunca mais esqueci. Tanto é que relato ao querido leitor e à querida leitora neste dia. Mas para aprender geralmente é necessária uma gama muito grande de variáveis como estar bem alimentado, ter bons professores e boa escola, ter interesse, vontade, enfim, para aprender é preciso ter paciência. Algumas pessoas, inclusive, falam que a paciência é a virtude dos sábios. E, como sabemos, nesta sociedade de neon, paciência é o que quase ninguém mais tem. Lembro-me que no livro “Compostela – Muito além do Caminho de Santiago”, escrevi um artigo intitulado “Apressaram o mundo”, onde as atividades humanas que deveriam ser feitas com prazer estão virando um frenético repetir, repetir, repetir... sempre! Lenine, na música “Paciênci

Visitas