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Como conhecer a si mesmo*

A vida é uma difícil aventura de viver consigo mesmo. Muito daquilo que vemos nos outros são apenas reflexos do que nossa alma insiste em não aceitar. O outro, por vezes, se torna um espelho diante de uma realidade que não aceitamos em nós mesmos. A mais longa viagem que podemos fazer é para dentro do nosso próprio coração. Em territórios desconhecidos, os sentimentos ainda não reconciliados com nosso coração sempre são inimigos a serem combatidos em uma guerra sem fim. Quem não aprende a viver consigo mesmo, dificilmente conseguirá conviver com o próximo. Somente quando aprendemos a caminhar com leveza, por entre os espinhos de nossa alma, é que conseguimos observar que as flores também se encontram lá. O fruto da vida só é doce quando temos a coragem de vivenciar os processos de amadurecimento dos sentimentos que amargam a nossa história. Muitos se acostumaram a fazer da vida um eterno plantão de reclamações. Acordam pela manhã reclamando do trabalho e das pessoas com qu

Somos poucos*

E explodimos todos porque somos poucos Não cabemos na ordem que nos deram, de troco. Pousamos onde não nos espantam. Pousamos e rebentamos porque somos poucos Penso nos mortos nos desaparecidos. Entre eles e nós, há um redobrado aviso. Um morse ou instinto. Algo que sobrevive à criação, ao dilúvio. Um aperto de mão que, de tão longe, é abraço. O soluço ao lado de outro soluço súbito. E tudo é o mesmo laço irresolúvel. Sobreviventes, nascendo aos poucos. Aos poucos, aos poucos sobrevivendo. Nascendo aos poucos, aos poucos. Carlos Nejar*

Preso por vontade própria*

Depois do lançamento do livro, voltei para meu quarto, mas estava sem sono. Peguei um bom tinto que estava na geladeira, sentei na cadeira de balanço, abri a garrafa, enchi meia taça e enquanto o vinho respirava, fiquei olhando a lua através da lente formada pelo vidro contendo o liquido de cor escura. Era noite de lua cheia, passava da meia noite, o silêncio indicava que a cidade estava dormindo e o único som que escutava, era uma coletânea de fados que havia ganho de um amigo e tocava suavemente no computador. A lua se escondia por trás do vinho, mas conforme o balanço da taça, a fazia aparecer e desaparecer. Brinquei assim por uns bons minutos enquanto pensava nas coisas que pareciam estar anestesiadas em mim e começaram a despertar e também se fazer ver durante a viagem. Para fazer com que a lua se mostrasse por inteiro, comecei a beber e esvaziar a taça. Parece que o primeiro gole sempre é o melhor. O contato das papilas, ainda ansiosas e intocadas, com o vinho ca

O Cristo subterrâneo*

Descubro um Cristo secreto Que nasce na Espanha súbito. Não é o Cristo vitorioso Dos afrescos catalães, Nem o Cristo de Lepanto Suspenso por uma torre De espadas, velas, paixões. Não investe uma colina, Não brilha no meio do altar Entre ornamentos de prata. Nem no palácio dos ricos, Nem no báculo dos bispos. É um Cristo quase secreto Que nasce das catacumbas Da Espanha não-oficial. Nasce da falta de pão, Nasce da falta de vinho, Nasce da funda revolta Contida pela engrenagem Da roda de compressão. Nasce da fé maltratada, Vagamente definida. É um Cristo dos operários Atentos, em pé de greve, Filhos de outros operários Mortos na guerra civil. É um Cristo dos estudantes Sem dinheiro para as taxas. É um Cristo dos prisioneiros Que no silêncio cultivam A pura flor da esperança. É um Cristo de homens-larvas, Famintos, inacabados, Morando em covas escuras De Barcelona e Valência. É um Cristo de experiência De padres inconformistas Que não

Clarividências*

Existem eventos onde é possível antever o que ainda não é sendo. Em uma lógica a priori, nem sempre cabível nalguma racionalidade das evidências concretas, atua como uma premonição ou mediação sem palavras. Seu teor de caráter difuso possui algo mais a superar o aqui_agora conhecido. Um futuro imperfeito se antecipa ao que deveria ser.   Seu teor de anúncio esparrama-se com os termos agendados no intelecto. Esse rumor clarividente costuma desorganizar o chão existencial onde a vida mecânica se desenrola. Uma série de indícios vão surgindo na visão inesperada de algo irreconhecível. Perplexidade diante de um amanhã_agora_passando. A maior parte desses acontecimentos se dá na interseção entre o sujeito, suas circunstâncias existenciais e o instante fugaz. Assim a epistemologia se parece com um microscópio ao contrário. Sua tez se aproxima de algo a preencher uma lacuna, até então, imperceptível de ser lacuna. A atenção busca significar essa distorção na forma de pressentimento

Barbacena*

Barroco, gótico, ornamento, floreio. Casas-palácio com hortênsias, cães de guarda fixos uivando nas bordas do telhado, jardins em ziguezague e escadas glamourosas: a beleza que o próprio terreno faz pra gente ver, nas casas subindo o morro, em vários patamares.  Mas a arquitetura também pode doer. A frieza das salas de aula brancas por toda parte. Comunicação, só nos murais. A frieza de ar, apenas ar, onde faltam pessoas em seu sentido completo. Como cascas das vagens de sibipiruna, que estalam secas, as encontramos salpicadas pelo campus. Mas onde estão elas, em seu todo? A visita ao Museu da Loucura me tocou fundamente, talvez mais ainda depois, já em casa, percebendo as dificuldades de convívio na família. Num livro em que médico e paciente descrevem sua experiência para além da prática psiquiátrica, Viagem através da loucura, encontro um alento para minha tese, vivida na carne. “Na maioria dos casos, a pessoa diagnosticada como ‘doente mental’ é o bode expiatório emoci

Deus, que será de ti ?*

Que farás tu, meu Deus, se eu perecer? Eu sou o teu vaso – e se me quebro? Eu sou tua água – e se apodreço? Sou tua roupa e teu trabalho Comigo perdes tu o teu sentido. Depois de mim não terás um lugar Onde as palavras ardentes te saúdem. Dos teus pés cansados cairão As sandálias que sou. Perderás tua ampla túnica. Teu olhar que em minhas pálpebras, Como num travesseiro, Ardentemente recebo, Virá me procurar por largo tempo E se deitará, na hora do crepúsculo, No duro chão de pedra. Que farás tu, meu Deus? O medo me domina. * Rainer Maria Rilke

Marionetes*

“Valorize os seus limites e por certo não se livrará mais deles” (Richard Bach) Somos seres complexos e dinâmicos, moldados por circunstâncias e crenças que coexistem e são tão incontáveis quanto as estrelas no céu, que brilham divinamente alheias a nossa vontade. Elas (as estrelas) se infiltram pelas existências como a bruma penetra o vazio e preenchem de sentido o que lhe convém, não necessariamente a favor daqueles a quem iluminam, mas sempre em movimento e com um delicioso toque de mistério no ar. Somos também seres bizarros, suspensos por fios imaginários e à mercê de intenções que vasculham territórios – supostamente invioláveis – invadindo-os e arrebatando-os de sua frágil plasticidade. Ao cavalgar unicórnios delirantes pelas infindáveis e confortáveis redes, avança-se e penetram-se entrelinhas de um cotidiano fluido e surreal, composto de seres ávidos por utopia, que em muitos momentos não se importam em transgredir essências através de superficialidades. Tra

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