Pular para o conteúdo principal

Postagens

Com Quantos Tenho que Casar?*

Querida íbis: Desculpa o papel impróprio em que te escrevo; é o único que encontrei na pasta, e aqui no Café Arcada não têm papel. Mas não te importas, não? Acabo de receber a tua carta com o postal, que acho muito engraçado. Ontem foi — não é verdade? — uma coincidência engraçadíssima o facto de eu e minha irmã virmos para a Baixa exactamente ao mesmo tempo que tu. O que não teve graça foi tu desapareceres, apesar dos sinais que eu te fiz. Eu fui apenas deixar minha irmã ao Avda. Palace, para ela ir fazer umas compras e dar um passeio com a mãe e a irmã do rapaz belga que aí está. Eu saí quasi imediatamente, e esperava encontrar-te ali próximo para falarmos. Não quiseste. Tanta pressa tiveste de ir para casa de tua irmã! E, ainda por cima, quando saí do hotel, vejo a janela de casa de tua irmã armada em camarote (com cadeiras suplementares) para o espectáculo de me ver passar! Claro está que, tendo visto isto, segui o meu caminho como se ali não estivesse ninguém. Q

Sobre escrever poesias*

Escrever poesias é um ofício solitário. Mas de onde tira o poeta aquilo que escreve? De onde tira as cores para pintar suas flores? De onde tira a música para melodiar seus versinhos? O que faz o poeta ver belezas em qualquer cantinho, onde muitos nada vêem? O poeta é um solitário no seu ofício de escrever. Precisa acontecer, contudo, alguma coisa antes da escrita. Sua alma precisa ser tocada. Seu coração enternecido. Precisa ver um olhar que brilha. Escutar uma voz amável. Ouvir um sorriso infantil. Precisa sentir.... Não se comanda um poeta. Não se deve esperar nada do poeta em hora marcada. Poeta não é casa de doces e salgados para fazer encomendas. Aconteceu assim: Tinha um espelho velho que coloquei no meu jardim atrás de umas flores. Ficou lá um ano. Um dia ela me visitou. Mostrei-lhe o espelho e disse-lhe que era para as flores se olharem no espelho. Ela sorriu. Eu sorri. E a poesia nasceu: Eu tinha um espelho Muito velhinho Que coloquei no meu jardim

Sonho*

“(...) Serei todos ou ninguém.  Serei o outro Quem sabe sem saber eu sou, o que fitou Esse outro, minha vigília. E a julga, Resignado e sorridente.” Jorge Luis Borges - Sonho Depois de dormir um sono errante, Vaguear pelo inconsciente, correr o mundo, Entrar por todos os cantos da memória. Explorar o passado, o vivido, o insignificante, Em todos os lados, ser personagem e autor, Depois escrever tudo de forma mais absurda: O nexo da noite está no acordar vivo. Ver que o tempo mudou, o sonho é um trem, Desloca ao passado, se perde, o túnel é o caminho, Sem temer a censura, o outro lado é a viagem do autor, O maquinista da noite não teme o fim, Tem o controle da luz na escuridão, Seus personagens, um vasto complexo de Outros, Todos, sujeitos, uns, obra do autor a viver na onírica viagem, prova do recorte da vida que sonha, O dia, mais cedo ou mais tarde, luz dos olhos, Acenderá os filamentos da linguagem do noctívago. “... e essa regressã

Reflexão n°.1*

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio Nem ama duas vezes a mesma mulher. Deus de onde tudo deriva E a circulação e o movimento infinito.     Ainda não estamos habituados com o mundo Nascer é muito comprido. *Murilo Mendes

Versos e prosas*

Ser escritor... Ser poeta... Um exercício das almas livres. Rosângela Rossi O que nos leva a colocar para fora nossas dores e amores? Nossa lucidez ou nossa loucura? Nosso desejo altruísta ou nosso egoísmo? O que nos faz usar a linguagem escrita com tanta avidez? Lacan explica que inconsciente se estrutura pela linguagem. Será só pelo desejo de "nos fazer" que escrevemos?  Que deuses nos habitam e nos clamam a esta tão nobre ação? Somos mais sensíveis? Somos mais apaixonados? O que nos diferencia? F. Scott Fitzgerald (O Grande Gatsby) escreveu: "Você não escreve porque quer dizer alguma coisa. Você escreve porque tem algo a dizer" Truman Capote (A Sangue Frio) explicou: "Para mim, o maior prazer em escrever não está no assunto sobre o qual escrevo, mas na música interior em que essas palavras soam." Lord Byron (Don Juan) declarou: "Se eu não escrever para esvaziar minha mente, eu fico louco." Gustave F

A Necessidade da Filosofia*

A filosofia não brota por ser útil, mas tão pouco pela ação irracional de um desejo veemente. É constitutivamente necessária ao intelectual. Por quê? A sua nota radical era buscar o todo como um tal todo, capturar o Universo, caçar o Unicórnio.  Mas por quê esse profundo anseio? Por que não nos contentamos com o que, sem filosofar, achamos no mundo, com o que já é e aí está patente diante de nós? Por esta simples razão: tudo o que é e está aí, quanto nos é dado, presente, patente, é por sua essência um mero bocado, pedaço, fragmento, coto.  E não podemos vê-lo sem prever e verificar que está a menos a porção que falta. Em todo o ser que é dado, em todo o dado do mundo encontramos a sua essencial linha de fratura, o seu carácter de parte e só parte - vemos a ferida da sua mutilação ontológica, grita-nos a sua dor de amputado, a sua nostalgia do bocado que lhe falta para ser completo, o seu divino descontentamento.  Há doze anos, quando eu falava em Buenos Aires, definia

O que sente o elefante?*

                                        Verdades sociais estabelecem ligações entre as pessoas e os animais. João é forte como um touro! Covarde como um rato! Perigoso como uma cobra! Na observação contemporânea, fugaz e exterior pode ocorrer a tradução nesse sentido e bem qualificar a virtude ou vicissitude. O elemento temporal é importante para se perceber perdurar ou outro roteiro é traçado nas andanças existenciais do ser. Ao poderoso elefante se concebe a lembrança, a memória, o sentimento de que o tempo transcorrido guarda qualidades. Talvez a observação de que o animal elefante percorra longas caminhadas na sua trajetória de vida, perseguindo condições alimentares adequadas e sempre retornando ao mesmo local originário, mesmo diante dos obstáculos que se oponham, em uma vivência desafiadora, perfilou cemitérios para que seus iguais, naturalmente o próprio, venha a observar seus últimos dias, desta feita longe da manada, em vivência isolada e co

Visitas